Segurança jurídica e liberdade das partes: em busca de um ponto de equilíbrio

O CPC/2015 retirou das partes o monopólio da determinação dos limites objetivos da coisa julgada, os quais, com a coisa julgada sobre questão prejudicial incidental, foram ampliados pela lei processual.

A nova realidade imposta pelo CPC/2015 pressupõe uma dentre duas possíveis interpretações: houve limitação na liberdade das partes na determinação do objeto litigioso, que passou a ser composto pelos pedidos (como já ensinava Schwab[1]) e, também, pelas questões prejudiciais de mérito, de modo que o Estado-juiz aprecia tal objeto litigioso e esses são os limites objetivos da coisa julgada. Ou, então, que as questões prejudiciais não compõem o objeto litigioso, de modo que os limites objetivos da coisa julgada não possuem mais estrita correspondência com o objeto litigioso (pretensões deduzidas em juízo).[2]

A segunda perspectiva parece mais acertada. Com efeito, as questões prejudiciais incidentais não compõem o objeto litigioso. São antecedentes lógicos à análise das pretensões deduzidas em juízo (mérito), mas não o compõem. Destarte, a conclusão inexorável é de que o CPC/2015 rompeu com a premissa de que os limites objetivos da coisa julgada permanecem restritos aos pedidos formulados pelas partes.

Seja como for, é inegável que a liberdade das partes na delimitação das questões que serão imutabilizadas pela auctoritas rei iudicatae foi significativamente reduzida. Isto é, a nova codificação processual mitigou a liberdade das partes acerca de quais questões formarão coisa julgada. Cabe investigar, nesse cenário, se o aumento da segurança jurídica foi proporcional ou superior à restrição na liberdade das partes.

Segurança jurídica (representada pela eliminação de contradições lógicas), eficiência (consubstanciada na economia processual) e cooperação (materializando-se na boa-fé) – estes são, a priori, os benefícios e motivos que levaram à extensão da coisa julgada sobre as questões incidentais, nos termos do artigo 503, §§1º e 2º, CPC/2015.

As implicações práticas da adoção desse novo regime, contudo, não se encontram em estrita consonância com os motivos que levaram à sua adoção.

Em primeiro lugar, necessário perquirir se houve, efetivamente, incremento no que toca à segurança jurídica a partir da coisa julgada sobre questão prejudicial. Tal indagação deve ser analisada sobre dois prismas: a vedação à discussão de questões prejudiciais já decididas e os requisitos elencados pela legislação processual para a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada.

A coisa julgada sobre questão prejudicial eliminou, como exposto, eventuais contradições lógicas advindas do CPC/73. No atual panorama, não é mais possível que a mesma questão prejudicial seja decidida de forma contraditória em dois processos, pois sobre ela recairá o manto da coisa julgada na primeira em vez que decidida, se presentes os requisitos. Inegável, outrossim, o incremento da segurança jurídica.

De outra parte, aumentou-se a insegurança jurídica devido às possíveis interpretações dos incisos do artigo 503, §§1º e 2º, CPC/2015. Com efeito, houve perda de clareza e de previsibilidade quanto à formação da coisa julgada.[3]

Se caminhamos em direção a um sistema no qual se retira das partes a plena liberdade na determinação dos limites objetivos da coisa julgada, é imperativo salvaguardar ao menos previsibilidade acerca de quais questões serão imutabilizadas. E esse é o escopo do artigo 503, §§1 e 2º, CPC/2015. O impasse reside na antiga problemática existente entre texto e norma: ainda que os requisitos estejam expressamente previstos na codificação, são inúmeras as interpretações a eles atribuíveis.

Ademais, imperioso ressaltar que os custos e o tempo do processo aumentarão (é o que ocorre nos países que adotam o collateral estoppel). Tem-se a imposição de que, questões que serviriam apenas como antecedentes lógicos à decisão do pedido principal e que as partes não voltariam a discutir, transitem em julgado – mesmo que as partes assim não o desejassem. Nesse panorama, há quem advogue pela possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais a fim de afastar a incidência da coisa julgada sobre a questão prejudicial.[4]

Além disso, a coisa julgada sobre questão prejudicial, conforme prevista na legislação em vigor, promove diversas indagações às quais o código mantém-se silente: a questão prejudicial decidida desfavoravelmente ao vencedor transita em julgado? Há interesse recursal para impugnar de forma autônoma a questão prejudicial? O magistrado deve decidir sobre todas as questões prejudiciais ou subsiste o princípio da razão mais líquida? Qual o alcance da expressão “contraditório efetivo” contida no inciso II, §1º do artigo 503, CPC? Em verdade, tais perguntas são apenas algumas diante das diversas incertezas que a nova legislação promoveu ao prever a coisa julgada sobre questão prejudicial.

Perde-se também em segurança jurídica no que concerne à previsibilidade do que será objeto da coisa julgada, que é reduzida no momento em que se rompe a vinculação entre a res judicata e o objeto do processo. Isso porque, como exposto, a imutabilidade passa a atingir não apenas os pedidos formulados pelas partes, mas também os antecedentes lógicos que eventualmente surjam na dinâmica do processo.[5] Tais questões prejudiciais, destarte, não são totalmente previsíveis às partes, nada obstante comporem a causa de pedir (não integrando, a nosso ver, o objeto litigioso).


[1]                     Schwab, Karl Heinz. El objeto litigioso en el Proceso Civil. Banzhaf, T. A (trad. por). Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1968, p. 241-252.

[2]                     Antonio do Passo Cabral parece ater-se a essa segunda perspectiva ao assentar, ainda sob a vigência do CPC/73, que “(…) não haveria qualquer dificuldade em pensar um modelo de coisa julgada e preclusões desatrelado do objeto do processo. Nesse sentido, não seria nada estranho ao processo civil se a estabilidade da decisão atingisse outros conteúdos não postos pelas partes” (Cabral, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas…, Op. cit., p. 152). Manifesta igual entendimento Thiago Ferreira Siqueira: “(…) a ampliação da coisa julgada para as questões prejudiciais incidentais não modifica, ao contrário do que já se chegou a sustentar, o modo como deve ser enxergado o objeto do processo. Na verdade, o que ocorre nestes casos é que a coisa julgada alcança conteúdos que não integram o mérito da causa, e tampouco o objeto do julgamento”. (Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada…, Op. cit., p. 39).

[3]                     Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada…, Op. cit., p. 478.

[4]                     Assim defende Redondo, Bruno Garcia. Questões prejudiciais e limites objetivos da coisa julgada no Novo CPC. Revista de Processo, Op. cit., n. 7.6.12.

[5]                     Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada… Op. cit., p. 26.