Requisitos insculpidos no artigo 503, §§1º e 2º, do CPC/2015 para a formação de coisa julgada sobre questão prejudicial

Se, por um lado, o legislador retirou das partes o monopólio na determinação dos limites objetivos da coisa julgada, por outro, teve o cuidado de elencar requisitos expressos para que a questão prejudicial seja acobertada pela res iudicata. E são tais condições que diferem os regimes jurídicos de formação da coisa julgada sobre o objeto do processo se comparado ao da resolução de questões prejudiciais, visto que tais requisitos inexistem em se tratando da coisa julgada sobre as questões principais.[1]

Primeiramente, mister elucidar a matéria sobre a qual recairá o manto da coisa julgada, em que pese não ser deduzida como pedido principal. Trata-se da questão prejudicial incidental.[2]

Questão refere-se à matéria controvertida. Doutrinariamente, ponto e questão são tratados como conceitos diversos. Enquanto ponto refere-se a uma afirmação incontroversa, a questão diz respeito à matéria controvertida, ou seja, sobre a qual as partes discordam. Por força da expressa previsão legal[3], pontos prejudiciais, sobre os quais não há controvérsia, não são acobertados pela coisa julgada; apenas o são as questões prejudiciais incidentais.

Prejudicial, destarte, diz respeito a “questões de cuja solução dependa o teor ou conteúdo da solução de outras”.[4] A questão prejudicial constitui então antecedente lógico da conclusão da sentença[5], i.e., passo necessário e determinante à solução das pretensões deduzidas (tomadas neste ensaio como sinônimo de pedido e de mérito). Exemplo é a validade do contrato na demanda em que se pleiteia sua execução.

Além disso, parcela majoritária da doutrina sustenta que apenas relações jurídicas constituem prejudiciais incidentais aptas à formação de coisa julgada material.[6] Assim sendo, questões de fato e de direito não se submetem à previsão do artigo 503, CPC/2015.

Incidental, por sua vez, é a matéria que não fora deduzida inicialmente, mas que desponta durante o trâmite processual; ou seja, que não constitua o objeto do processo, o pedido principal.[7]  Aliás, se a matéria prejudicial incidental for expressamente pedida pela parte, torna-se questão principal, submetendo-se ao regime tradicional da coisa julgada.

Não é, contudo, toda questão prejudicial incidental que transitará em julgado. Para tanto, é necessário o preenchimento cumulativo dos requisitos elencados no artigo 503, §§1º e 2º, CPC/2015. Nesse diapasão, é ainda necessário que: (i) haja decisão expressa sobre a questão prejudicial (artigo 503, caput¸CPC/2015); (ii) a análise da questão prejudicial seja imprescindível à resolução do mérito (artigo 503, §1º, inciso I, CPC/2015); (iii) a questão prejudicial seja objeto de amplo e prévio contraditório (artigo 503, §1º, inciso II, CPC/2015); (iv)  sejam observadas as regras de competência absoluta (artigo 503, §1º, inciso III); (v) por fim, que não haja restrições probatórias ou cognitivas (artigo 503, §§1º e 2º, CPC/2015).[8]

A questão prejudicial deve ser (i) expressamente decidida. Em outras palavras, o magistrado deve se manifestar de forma expressa, clara, analítica e fundamentada sobre a questão prejudicial.[9]

Ademais, a análise da questão prejudicial deve ser (ii) imprescindível à resolução de mérito. Observa-se, sobre tal requisito, duas correntes interpretativas. Para uma delas, referida previsão constitui um plus à prejudicialidade. Isto é, a questão deve, no caso concreto, determinar a forma como o mérito será resolvido. [10] Em sentido oposto, parcela da doutrina entende que não há necessidade de que a questão prejudicial seja concretamente decisiva à resolução do mérito – “basta que em tese ela se ponha como tal”.[11]

Explica-se a partir do exemplo anteriormente citado: em eventual ação de petição de herança, caso o magistrado entenda que o autor é filho do de cujus, mas que não há bens a serem partilhados, deve julgar improcedente o pedido de herança. Consoante a primeira corrente interpretativa, a questão da filiação faz coisa julgada (desde que observados os requisitos), vez que prejudicial ao pedido de herança. Já para a segunda, não haverá formação de coisa julgada sobre a questão da filiação porque ela não foi, in concreto, determinante à decisão de mérito.

O debate é essencial para determinar se questões decididas desfavoravelmente ao vencedor ou favoravelmente ao sucumbente formam coisa julgada material. E mais: para determinar se há interesse recursal do vencedor que foi sucumbente apenas na questão prejudicial. As respostas para tais indagações não são unânimes e é inegável que esta dubiedade interpretativa promove insegurança acerca de quais questões foram imutabilizadas pela coisa julgada.

O requisito do (iii) amplo e prévio contraditório, por sua vez, determina que seja conferida às partes a possibilidade de influenciar a decisão.[12] Fala-se em “possibilidade” justamente para coibir que a inércia da parte na defesa de seus interesses não se torne um artifício para afastar a formação da coisa julgada.[13] Por esse motivo, o CPC prevê expressamente que não há coisa julgada sobre a questão prejudicial em caso de revelia.

A disposição não é isenta de críticas, pois a revelia não impede o contraditório. Se o réu teve ciência de demanda contra si proposta e deliberadamente ausentou-se do processo, houve manifestação do contraditório.[14]

Impõe-se ainda que (iv) o juiz seja competente para julgar a questão como se principal fosse. A condição é coerente e legitima a imutabilização da questão prejudicial.[15] Nestes termos, não há óbice a que o juiz conheça de questões prejudiciais e as decida incidentalmente como pressuposto lógico da decisão; a questão prejudicial somente não se tornará imutável, podendo ser rediscutida em outros processos.[16]

Para arrematar, (v) não pode haver restrições probatórias ou cognitivas no processo. Exige-se, outrossim, cognição plena sobre a questão prejudicial incidental. Deste modo, infere-se, a uma primeira vista, que procedimentos com restrições probatórias – seja por força de lei (como no mandado de segurança), seja por vontade das partes (na celebração de negócios jurídicos processuais) – ilidem a formação de coisa julgada sobre a questão prejudicial. Em igual sentido, depreende-se que limitações cognitivas (como as existentes em ações possessórias) coíbem o regime “especial” de coisa julgada.

Essa conclusão, entretanto, não é acertada, pois recai em generalizações. O §2º do artigo 503 afasta expressamente a formação de coisa julgada quando houver restrições probatórias ou limitações à cognição impeditivas à análise da questão prejudicial.[17] É plenamente possível, por exemplo, a decisão sobre questão prejudicial por meio de prova documental em mandado de segurança se referida questão não demandava provas pericial e testemunhal.[18]

Da apertada síntese acerca dos requisitos exigidos para a formação de coisa julgada sobre questão prejudicial, nota-se a existência de inúmeras divergências interpretativas sobre eles. Válido, portanto, indagar se o sistema delineado pelo CPC/2015 efetivamente promoveu maior segurança jurídica, evitando decisões contraditórias em termos lógicos; ou se, ao revés, complexificou a identificação dos limites objetivos da coisa julgada a ponto de torna-lo inseguro.


[1]                     Assim preleciona Fredie Didier: “Há dois regimes jurídicos distintos de coisa julgada, no processo civil, que variam conforme o objeto da coisa julgada. Se a coisa julgada for relativa à resolução da questão principal (artigo 503, caput), aplica-se o regime jurídico comum e tradicional (…). Se a coisa julgada for relativa à resolução de questão prejudicial incidental, há uma diferença: o legislador impede a sua formação, em algumas situações previstas nos §§1º e 2º do artigo 503, unicamente aplicáveis a esse regime de coisa julgada” (Didier JR, Fredie. Extensão da coisa julgada à resolução da questão prejudicial incidental no novo Código de Processo Civil brasileiro. Civil Procedure Review, v.6, n.1, jan-apr., 2015, p. 81-94, p. 87).

[2]                     O regime de formação de coisa julgada material sobre questão prejudicial não se aplica à declaração de autenticidade/falsidade de documento, para a qual se exige pedido declaratório expresso, nos termos do artigo 430, CPC/2015.

[3]                     O §1º do artigo 503, CPC/2015 dispõe expressamente: “O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo (…)”. A previsão legal refere-se tão somente à questão prejudicial, de modo que pontos não são imutabilizados pela coisa julgada.

[4]                     Moreira, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Op. cit., p. 29. O processualista fluminense realiza ainda a distinção entre questões prejudiciais e preliminares, ensinando que “reservar-se-á a expressão “questões preliminares” para aquelas de cuja solução vá depender a de outras não no seu modo de ser, mas no seu próprio ser” (Moreira, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Op. cit., p. 29-30).

[5]                     Theodoro Júnior, Humberto. Limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. In.: Coisa julgada e outras estabilidades processuais. Didier JR, Fredie; Cabral, Antonio do Passo (coord. por). Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 165-188, p. 169.

[6]                     Assim, Didier JR, Fredie, Braga, Paula Sarno; Oliveira, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil: teoria da prova… Op. cit., p. 547. De modo diverso, Luiz Guilherme Marinoni ressalta: “(…) a doutrina já tinha apontado para a impropriedade de se pensar que questão prejudicial é apenas aquela que pode ser objeto de ação declaratória autônoma”. (Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. Op. Cit., p. 231).

[7]                     Redondo, Bruno Garcia. Questões prejudiciais e limites objetivos da coisa julgada no Novo CPC. Revista de Processo, vol. 248, out. 2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 43-67, n. 7.2.

[8]                     Sobre os pormenores dos requisitos elencados no §1º do artigo 503, CPC/2015 – temática ampla ao presente suporte –, Cf: Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. Op. Cit., p. 225 e ss; Wambier, Luiz Rodrigues; Talamini, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. II, Op. cit., p. 800 e ss; Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada… Op. cit., p. 463 e ss.

[9]                     Redondo, Bruno Garcia. Questões prejudiciais e limites objetivos da coisa julgada no Novo CPC. Revista de Processo, Op. cit., n. 7.2. 

[10]                   Lucca, Rodrigo Ramina de. Os limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 252. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, n. 4.4; Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada...Op. cit., p. 485-486.

[11]                   Talamini, Eduardo. Comentários aos arts. 502 a 508. In.: Código de Processo Civil anotado. Tucci, Rogério Cruz e. (coord. por). Rio de Janeiro, GZ, 2016, p. 717. Igualmente, Silva, Ricardo Alexandre da. Limites objetivos da coisa julgada e questões prejudiciais. Op. cit., p. 155.

[12]                   Silva, Ricardo Alexandre da. Limites objetivos da coisa julgada e questões prejudiciais. Op. cit., p. 156-157.

[13]                   Idem.

[14]                   Lucca, Rodrigo Ramina de. Os limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, Op. cit., n. 4.5.

[15]                   Ibidem, n. 4.6.

[16]                   Idem.

[17]                   Redondo, Bruno Garcia. Questões prejudiciais e limites objetivos da coisa julgada no Novo CPC. Revista de Processo, Op. cit., n. 7.5.

[18]                   Idem.