Princípio dispositivo e liberdade das partes na determinação do objeto litigioso

O princípio dispositivo é geralmente tido como sinônimo do princípio da inércia jurisdicional ou da demanda.[1] Assim, pelo princípio dispositivo “incumbe àquele que se diz titular do direito que deve ser protegido jurisdicionalmente (…) colocar em movimento o aparato judiciário”.[2]

A relevância do princípio dispositivo, no entanto, ultrapassa a mera inércia jurisdicional e aproxima-se do que Fredie Didier denomina de “princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo”. Consoante o professor baiano, o princípio em comento permite que as partes, pela sua vontade, delimitem o objeto litigioso do processo e do recurso.[3] Nesse diapasão, a máxima que rege o princípio dispositivo no que toca à disponibilidade da demanda e determinação do objeto litigioso é: a jurisdição só age nos limites em que é provocada.[4] E esta manifestação do princípio dispositivo é a que assume maior relevância ao presente tema.

Na vigência do CPC/73, as partes detinham o monopólio na determinação dos limites objetivos da coisa julgada, pois a res iudicata restringia-se aos pedidos deduzidos expressamente por elas. Explica-se: havia projeção do objeto do processo no dispositivo da sentença; as partes delimitavam o objeto do processo ao formularem seus pedidos e, em observância ao princípio da correlação, o dispositivo refletia a vontade dos litigantes.[5] Em última instância, durante a vigência do CPC/73, perdurou a concepção de que as partes determinavam a incidência da coisa julgada, que permanecia adstrita ao âmbito dos pedidos. Assim sendo, havia necessidade de que expressassem inequívoca vontade de deduzir determinada pretensão à apreciação jurisdicional para que a questão transitasse em julgado.[6]

Destarte, a cognição sobre questões que não eram objeto de pretensão das partes (v.g. questões prejudiciais não eram deduzidas em ação declaratória incidental), não era imutabilizada pela coisa julgada. Havia estrita correlação entre o objeto litigioso (mérito) e os limites objetivos da coisa julgada.

Necessário ressaltar que, no presente ensaio, parte-se da concepção de que o objeto litigioso é composto pelas pretensões deduzidas em juízo (pedidos) qualificadas pela causa de pedir.[7] Por óbvio, caso o réu apresente reconvenção ou pedido contraposto, deduzindo pretensões em face do autor, há acréscimo na formação do objeto litigioso. Nada obstante, caso o réu apenas resista à pretensão deduzida pelo autor, não há o que se falar em ampliação do objeto litigioso (mérito).[8] A resistência não possui lastro em si mesma, tendo razão de ser apenas em decorrência do pedido formulado pelo autor. Ou seja, o réu não deduz pretensões, apenas a elas resiste.

O regime adotado pelo CPC/73, que correlacionava estritamente os limites objetivos da coisa julgada às pretensões deduzidas, não era imune a críticas. Parcela da doutrina considerava-o excessivamente privatista e estático, visto que o objeto litigioso e, consequentemente, os limites objetivos da coisa julgada, permaneciam à mercê da vontade das partes.

Assim, em interpretação ao princípio dispositivo, às partes era conferido o poder de determinar quais matérias seriam alcançadas pela coisa julgada.[9] Nesse toar, interesses públicos relevantes num regime de estabilidade processual, como harmonia entre julgados, eficiência e igualdade, eram negligenciados.[10] Sendo a coisa julgada instituto constitucional e pertencente ao direito público, seu campo de incidência não deveria restar completamente submetido ao voluntarismo das partes.[11]

A nova codificação, por meio do artigo 503, rompe com o monopólio das partes sobre os limites objetivos da coisa julgada. Ao determinar a formação de coisa julgada além dos pedidos, de forma a abarcar também a questão prejudicial incidental, o CPC/2015 expande os limites objetivos da coisa julgada independentemente de pedido da parte, i.e., de modo automático; tem-se então a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada por determinação legal[12] – não por pedido expresso da parte.

Houve, outrossim, limitação à liberdade das partes na determinação do que será imutabilizado pela res iudicata em prol dos princípios da segurança jurídica, economia processual e boa-fé. Mas tal escolha legislativa – assim como a do CPC/73 – não permanece incólume a críticas.


[1]                     Ovídio Baptista da Silva é um dos poucos que distingue precisamente o princípio da demanda do princípio dispositivo: “Pelo princípio da demanda, o juiz fica limitado aos pedidos formulados pelas partes, ao passo que pelo princípio dispositivo seu poder fica demarcado pela iniciativa das partes quanto ao modo de condução da causa e quanto aos meios de obtenção dos fatos pertinentes a essa determinada lide” (SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil, vol. 1, 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 51).

[2]                     Wambier, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. II, Op. cit., p. 82.

[3]                     Didier JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 1. 17. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 132-135. De igual modo, Rodrigo Ramina de Lucca salienta: “O princípio dispositivo é um princípio de liberdade que traduz o necessário respeito e preservação da autonomia privada no âmbito processual” (Lucca, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade processual: os interesses privados das partes diante da natureza pública do processo. Tese (doutorado). Universidade de São Paulo, 2018, p. 38).

[4]                     Wambier, Luiz Rodrigues; Talamini, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. II, Op. cit., p. 82.

[5]                     Cabral, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas…Op. cit., p. 151.

[6]                     Exceções existiam no que concerne aos pedidos considerados implícitos, como condenação em custas, honorários de sucumbência etc.

[7]                     Do mesmo modo Tucci, Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 131.

[8]                     Em oposição, Fredie Didier inclui, dentre o objeto litigioso, o contradireito do réu (exercido contra o autor), como ocorre nos casos de compensação, exceção de contrato não cumprido, prescrição e direito de retenção.

[9]                     Lopes, Bruno Vasconcelos Carrilho. A extensão da coisa julgada às questões apreciadas na motivação da sentença, Revista de Processo, Op. cit., p. 431-438.

[10]                   Cabral, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas..., Op. cit., p. 150.

[11]                   Ibidem, p. 152.

[12]                   Didier JR., Fredie. Extensão da coisa julgada à resolução da questão prejudicial incidental no novo Código de Processo Civil brasileiro. Civil Procedure Review, Op. cit., p. 86. Nesse sentido é o Enunciado Nº 165 do FPPC, pelo qual: “A análise de questão prejudicial incidental, desde que preencha os pressupostos dos parágrafos do artigo 503, está sujeita à coisa julgada, independentemente de provocação específica para o seu reconhecimento”.