Os motivos que levaram à ampliação dos limites objetivos da coisa julgada – segurança jurídica, eficiência e cooperação

É cediço que a determinação dos limites objetivos da coisa julgada e de sua eficácia preclusiva é uma opção de política legislativa.[1] Nada obstante, algumas razões de ordem jurídica foram determinantes ao abandono da teoria restritiva plasmada no CPC/73. Nesse diapasão, ainda sob a égide do CPC/73 a doutrina já sustentava a necessidade de superar o dogma de que a coisa julgada deveria recair somente sobre o objeto litigioso do processo.[2]

A primeira (e mais evidente) dessas razões concerne à segurança jurídica, precipuamente à eliminação das contradições lógicas (coerência). Explica-se: durante a vigência do CPC/73, era possível que uma questão prejudicial já decidida fosse novamente apreciada pelo Estado-juiz e julgada de modo diverso. Deste modo, o regime do CPC/73 transmitia certo descrédito ao jurisdicionado, pois permitia que a mesma questão prejudicial fosse objeto de cognição mais de uma vez, gerando inclusive decisões contraditórias.[3] Nesse contexto, a lei processual permitia a “flagrante colisão entre premissas de diferentes decisões, proferidas pelo mesmo juízo sobre o mesmo arcabouço fático”.[4]

Para Cândido Rangel Dinamarco, tais incongruências eram tão somente conflitos teóricos, vez que não havia impedimento prático ao cumprimento de sentenças contraditórias no que toca à resolução da questão prejudicial.[5] Em termos fáticos as ponderações do professor paulista justificam-se, pois não havia óbice ao cumprimento de decisões cuja motivação fosse incongruente com decisão proferida anteriormente, mas cujo objeto litigioso fosse diverso. Ou seja, preponderava a noção de que a coisa julgada deveria evitar conflitos práticos entre os julgados e que os conflitos lógicos ou teóricos, em que pese indesejáveis, não diziam respeito à res judicata.[6]

No entanto, é patente que tais incongruências sistêmicas promoviam descrédito e maculavam a coerência do direito. Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni acertadamente pontua que tais contradições são incompatíveis com um sistema processual que promova a tutela dos direitos e a eliminação dos conflitos.[7]

O segundo motivo refere-se à eficiência e à economia processual.[8] Se o nível de cognição das questões prejudiciais revela-se profundo o bastante para gerar uma decisão de mérito, razão não há para que a autoridade da coisa julgada permaneça restrita ao decisum.[9] Trata-se, destarte, “do dever de o legislador estruturar o processo de modo a permitir o alcance da tutela efetiva e tempestiva com o menor desgaste possível do Estado”.[10] Evita-se assim a rediscussão da mesma questão em futuros processos, de modo a promover a economia e eficiência processual (ou agilidade procedimental).

Por fim, a coisa julgada sobre questão prejudicial incidental encontra respaldo também nos princípios da boa-fé e da cooperação, pressupostos éticos do CPC/2015 [11] que se relacionam intimamente.

A boa-fé refere-se à necessidade de proteção da confiança legítima e ao exercício probo das posições jurídicas pelos sujeitos processuais, evitando-se abusos.[12] Dela decorre a vedação ao venire contra factum propium, a máxima da proibição de comportamentos processuais contraditórios, que afrontem expectativas processuais.[13] Sua razão de ser reside tutela da confiança e “das legítimas expectativas decorrentes da conduta inicial vinculante”.[14]

A cooperação, por sua vez, manifesta-se sob dois aspectos: como princípio e como modelo processual. Como princípio, desdobra-se em quatro deveres que regem a atuação dos sujeitos processuais: são os deveres de esclarecimento, diálogo, prevenção e auxílio.[15] Como modelo, a colaboração pressupõe a conformação do processo como verdadeira “comunidade de trabalho”[16], em que o magistrado ocupa posição paritária no diálogo e assimétrica na decisão.[17]

Nesse diapasão, consoante Luiz Guilherme Marinoni, submeter à apreciação jurisdicional questão anteriormente decidida macula a vedação do comportamento contraditório, bem como a postura cooperativa que das partes se espera, pois representa a tentativa de “desconstruir o que se colaborou para criar no processo anterior”.[18]

Dito de outro modo, a coisa julgada sobre questão prejudicial vem a concretizar a boa-fé objetiva na sua dimensão do venire contra factum proprium, princípio fundante do collateral estoppel. [19] Simultaneamente, tutela o princípio cooperativo ao preservar o que fora produzido na “comunidade de trabalho”.[20]

Ademais, em se tratando do princípio cooperativo, necessário ponderar que a coisa julgada sobre questão pressupõe a concretização da cooperação em seus dois âmbitos. A coisa julgada sobre questão homenageia o princípio cooperativo ao estabilizar questões decididas em processo anterior. Simultaneamente, impõe a observância do modelo cooperativo, gravando a postura simétrica do magistrado em seu diálogo com as partes[21]; tal diálogo, assim como o contraditório, são imprescindíveis a que as partes não sejam surpreendidas com a formação de coisa julgada sobre questão que acreditavam não ser elemento relevante para o julgamento da causa.

Portanto, em homenagem a tais valores – segurança jurídica, eficiência e cooperação –, a política legislativa pendeu para a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada. Mas a concretização de tais valores passa necessariamente pela adequada previsão legal acerca das condições exigidas para que a questão prejudicial seja imutabilizada pela coisa julgada.


[1]                     Por todos, Monteleone, Girolamo. Diritto Processuale Civile, 3. ed., Padova: Cedam, 2002, p. 531-532.

[2]                     Nesse sentido, Lopes, Bruno Vasconcelos Carrilho. A extensão da coisa julgada às questões apreciadas na motivação da sentença. São Paulo: Revista de Processo, vol. 216, fev. 2013, p. 431-438, passim.

[3]                     Ilustra-se a situação a partir do exemplo comumente citado pela doutrina (e, quiçá, o mais didático): em uma ação de alimentos, na qual não havia pedido expresso para que fosse declarada a paternidade (ou seja, em que não fora ajuizada ação declaratória incidental e em que tal pedido não fora deduzido), era possível que fosse declarada a paternidade para fins de condenação em alimentos. Tal antecedente lógico, conforme dispunha o CPC/73, não era albergado pela coisa julgada. Posteriormente, em eventual petição de herança, era plenamente possível que a questão da paternidade fosse julgada de modo diverso, de sorte que a filiação não fosse reconhecida. Utilizam-se desse exemplo Wambier, Luiz Rodrigues; Talamini, Eduardo. Curso avançado de processo civil, vol. 2, Op. cit., p. 799; MARINONI, Luiz Guilherme; Arehart, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil, vol. II., Op. cit., p. 683; Didier JR, Fredie, Braga, Paula Sarno; Oliveira, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 11.ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 547.

[4]                     Silva, Ricardo Alexandre da. Limites objetivos da coisa julgada e questões prejudiciais. Tese (doutorado). Universidade Federal do Paraná, 2016, p. 189.

[5]                     Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. III. 3.ed. Editora Malheiros: São Paulo, 2003, p. 313. Influenciado por Chiovenda, que afastava as teorias que ligavam a coisa julgada à busca pela verdade, o professor paulista ressalta: “Evitar conflitos práticos é o resultado que se coaduna com o escopo pacificador da própria jurisdição, a qual não se exerce para fixar teses jurídicas nem para a descoberta da verdade dos fatos como um objetivo em si próprio” (Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. III. Op. cit., p. 314).

[6]                     Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada… Op. cit., p. 471. 

[7]                     Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. Op. cit., p. 217. “A coisa julgada sobre questão tem grande importância para evitar decisões díspares a respeito de situações que exigem o mesmo tratamento”. (Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. Op. cit., 2018, p. 218).

[8]                     Consoante a exposição de motivos do CPC/2015, a coisa julgada sobre questões prejudiciais foi adotada justamente em prol da eficiência. Nestes termos, “4) O novo sistema permite que cada processo tenha maior rendimento possível. Assim, e por isso, estendeu-se a autoridade da coisa julgada às questões prejudiciais”.

[9]                     Alvim, Teresa Arruda. O que é abrangido pela coisa julgada no Direito Processual Civil brasileiro: a norma vigente e as perspectivas de mudança, Revista de Processo, Op. cit., n. 2.

[10]                   Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. Op. cit., p. 223.

[11]                   Artigo 5º, CPC/2015: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”; artigo 6º, CPC/2015: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.

[12]                   Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz; Mitidiero, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado, Op. cit., p. 161.

[13]                   Tunala, Larissa Gaspar. Comportamento processual contraditório: A proibição de venire contra factum proprium no direito processual civil brasileiro. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 325.

[14]                   Ibidem, p. 317.

[15]                   Wambier, Luiz Rodrigues; Talamini, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. 1. 16. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 83.

[16]                   Mitidiero, Daniel. Colaboração no Processo Civil: Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 65

[17]                   Ibidem, p. 64-65.

[18]                   Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. Op. cit., 2018, p. 211.

[19]                   Ibidem, p. 210.

[20]                   A expressão é empregada por Daniel Mitidiero, que preleciona: “A colaboração é um modelo que visa dividir de maneira equilibrada as posições jurídicas do juiz e das partes no processo civil, estruturando-o como uma verdadeira comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft), em que se privilegia o trabalho processual em conjunto do juiz e das partes (prozessualen Zusammenarbeit). Em outras palavras: visa a dar feição ao aspecto subjetivo do processo, dividindo de forma equilibrada o trabalho entre todos os seus participantes – com um aumento concorrente dos poderes do juiz e das partes no processo civil”. (Mitidiero, Daniel. Colaboração no Processo Civil…, Op. cit., p. 52).

[21]                   Tais apontamentos foram feitos por Daniel Mitidiero na qualidade de membro da banca examinadora da tese de André Luiz Bäuml Tesser. A defesa ocorreu em 13/08/2018 na Universidade Federal do Paraná (UFPR).