O estado da arte do CPC/39 ao CPC/2015

A compreensão dos motivos que levaram ao atual regramento dos limites objetivos da coisa julgada impõe a análise das sucessivas alterações pelas quais o instituto passou no CPC/39 ao CPC/73 e neste para o código vigente.

O CPC/39 não disciplinava com precisão quais seriam os limites objetivos da coisa julgada. Contraditoriamente, em seu artigo 287, dispunha que “a sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas”, subentendendo que a coisa julgada restringir-se-ia à decisão das pretensões deduzidas pelas partes. Ao revés, no parágrafo único do mesmo artigo, previa que “considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão”, inferindo que a res iudicata abrangeria ao menos parte dos fundamentos da sentença.[1]

Nesse panorama, os autores divergiam: grande parte da doutrina, com base no parágrafo único do artigo 287 e influenciados por Savigny, sustentavam que a coisa julgada se estendia às questões analisadas na fundamentação, a despeito de não haver demanda específica nesse sentido;[2] e parcela minoritária defendia, com lastro nas lições de Chiovenda e de Liebman, a restrição da res iudicata ao dispositivo da sentença, passando ao largo de sua motivação.[3]

Diante do cenário de incerteza instalado pelo CPC/39, o legislador do CPC/73 previu de maneira bastante clara, no artigo 469, que o manto da coisa julgada albergaria tão somente a parte dispositiva da sentença de mérito, a qual dizia respeito apenas às pretensões formuladas pelas partes.[4] As questões prejudiciais não seriam acobertadas pela coisa julgada, nos termos do inciso III do artigo 469, caso não houvesse pedido específico para tanto – ou seja, caso não fosse proposta ação declaratória incidental. Dessa maneira, somente a resolução da demanda estaria inserida no espectro da coisa julgada, não seu antecedente lógico.[5]

Tratava-se, destarte, da teoria restritiva,[6] pautada por viés eminentemente privatista, pois cabia às partes a determinação dos pedidos (i.e., do objeto litigioso) e, consequentemente, dos limites objetivos da coisa julgada.[7] Assim, havia forte correspondência entre os pedidos aduzidos pelas partes e as questões que seriam imutabilizadas.

A res iudicata teve seus limites redefinidos uma vez mais com a entrada em vigor do CPC/2015. Mantendo em parte o regime estabelecido pelo CPC/73, artigo 504 do CPC/2015 prevê que não fazem coisa julgada, in verbis, “os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença” (artigo 504, inciso I) e nem “a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença” (artigo 504, inciso II).

Outrossim, a coisa julgada continua a incidir apenas sobre o dispositivo da sentença. O decisum, no entanto, passou a ser composto não apenas pela resolução dos pedidos deduzidos pelas partes, mas também pela resolução da questão prejudicial[8], desde que preenchidos certos requisitos, nos termos do artigo 503, §§1º e 2º, do CPC/2015.[9]

A nova codificação processual, deste modo, não inovou apenas no conceito de res judicata, mas também em seus limites objetivos. Inspirando-se no regime norte-americano do collateral estoppel[10]-[11], o CPC/2015 ampliou significativamente os limites objetivos da coisa julgada ao instituir dois regimes para sua formação: um concernente ao objeto do processo (os pedidos expressamente formulados pelas partes) e outro atinente às questões prejudiciais.[12]

As razões determinantes à alteração promovida na nova legislação processual, destarte, demandam especial atenção.


[1]                     Siqueira, Thiago Ferreira. Objeto do processo, questões prejudiciais e coisa julgada: análise dos requisitos para a formação de coisa julgada sobre questão prejudicial incidental no Código de Processo Civil de 2015. Tese (doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018, p. 464.

[2]                     Lopes, Bruno Vasconcelos Carrilho. Limites objetivos e eficácia preclusiva da coisa julgada. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 29.

[3]                     Deste modo: Moreira, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Tese de concurso para docência livre de Direito Judiciário. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1967, p. 74-80.

[4]                     Sobre o CPC/73, leciona Barbosa Moreira: “A disciplina atual é de ofuscante nitidez e repele toda e qualquer tentativa de raciocinar, em matéria de limites objetivos da res iudicata, com o que quer que não se inclua no dispositivo da sentença. Não há cogitar, nesse contexto, de questões, ainda daquelas cuja solução constitua premissa necessária da conclusão a que chegou o órgão jurisdicional”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Coisa julgada – limites objetivos, in.: Direito aplicado, vol. II, Rio de Janeiro, 2000, p. 448).

[5]                     Alvim, Teresa Arruda. O que é abrangido pela coisa julgada no Direito Processual Civil brasileiro: a norma vigente e as perspectivas de mudança. São Paulo: Revista de Processo, vol. 230, abr. 2014, p. 75-89, n. 2.

[6]                     Idem.

[7]                     Cabral, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 151-152.

[8]                     Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz; Mitidiero, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 616.

[9]                     Luiz Dellore salienta que a opção legislativa não foi pacífica no Congresso Nacional e que “(…) essa questão relativa aos limites objetivos da coisa julgada foi uma das mais alteradas ao longo da tramitação do Código. (…) Isso cabalmente demonstra, inclusive por parte do legislador, a dúvida em relação ao caminho a ser trilhado” (Dellore, Luiz. Conceito e limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. Processo em jornadas, Op. cit., p. 668-681, p. 672).

[10]                   Marinoni, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 27.

[11]                   Nada obstante a influência do regime da coisa julgada do Common Law no CPC/2015, deve-se salientar que a codificação brasileira não adotou o collateral estoppel, apenas nele se inspirou. Nesse sentido: Alvim, Teresa Arruda. O que é abrangido pela coisa julgada no Direito Processual Civil brasileiro: a norma vigente e as perspectivas de mudança, Revista de Processo, Op. cit., n. 4.1.

[12]                   Didie JR, Fredie. Algumas novidades sobre a disciplina normativa da coisa julgada no Código de Processo Civil brasileiro de 2015, In.: Coisa julgada e outras estabilidades processuais. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 94.