Limites objetivos da coisa julgada no CPC/2015

Premissa: conceito e noções gerais sobre coisa julgada

Comumente associada à segurança jurídica[1], a res judicata sempre foi (e continua a ser) objeto de amplos e profundos debates na ciência processual – seja no que toca à sua conceituação, natureza ou limites objetivos e subjetivos.[2] Sem olvidar as contribuições de Coutoure, Ugo Rocco e Konrad Hellwig, é inconcebível tratar de coisa julgada[3] sem debruçar-se sobre os célebres estudos de Liebman.

Em seu clássico ensaio sobre o tema, Liebman, tecendo críticas à teoria germânica, formula sua teoria adjetiva, pela qual “a autoridade da coisa julgada não é o efeito da sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se seus efeitos”.[4]

Entre nós, a teoria liebmaniana foi objeto de reformulação por parte de Barbosa Moreira. Consoante o processualista fluminense, a coisa julgada não seria a imutabilidade dos efeitos da sentença, mas a imutabilidade do conteúdo do comando da sentença[5], visto que as partes podem modificar os efeitos dela advindos[6]. Ovídio Baptista da Silva, a seu turno, entende que a imutabilidade se restringe à eficácia declaratória da sentença,[7] não atingindo o comando sentencial.[8]

O presente ensaio adota como premissa teórica a formulação de Barbosa Moreira. Isso porque, diferentemente do que defendia Ovídio Baptista, as partes não ficam vinculadas necessariamente à declaração jurisdicional; elas podem abdicar do que fora declarado na sentença, i.e., estabelecer outra solução para a questão.[9] Fica-lhes vedado, contudo, obter novo pronunciamento contrário ao conteúdo do dispositivo que transitou em julgado.[10]

A atual codificação processual alinha-se à teoria adjetiva de Liebman, dispondo, em seu artigo 502, que “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”.[11] O legislador substituiu o termo “eficácia” por “autoridade”, mas perdeu a oportunidade de apaziguar os debates doutrinários e jurisprudenciais acerca do conceito de coisa julgada.[12]

Em contrapartida, inovou grandemente na previsão concernente aos limites objetivos da coisa julgada, que passaram a atingir também as questões prejudiciais incidentais.


[1]                     Cf. Neves, Celso. Coisa julgada civil. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 504; Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz; Mitidiero, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, vol. II. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 668.

[2]                     Já alertava Barbosa Moreira: “Quem se detiver, porém, no exame do material acumulado, chegará à paradoxal conclusão de que os problemas crescem de vulto na mesma proporção em que os juristas se afadigam na procura de soluções” (Moreira, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista de Processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, vol. 416, jun. 1970 p. 9-17, p. 9)

[3]                     A referência à “coisa julgada” remete-se à coisa julgada material. Isso porque a chamada “coisa julgada formal” trata-se de modalidade de preclusão, não se confundindo com a verdadeira coisa julgada (i.e., com a coisa julgada material). Nesse sentido, Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz; Mitidiero, Daniel. NovoCurso de Processo Civil, vol. II, Op. cit, p. 669: “É [a coisa julgada formal], isso sim, uma modalidade de preclusão (preclusão temporal), a última do processo. Que torna insubsistente a faculdade processual de rediscutir a sentença nele proferida.” Entendendo que o conceito de coisa julgada material e formal refere-se ao comando, não à coisa julgada, Wambier, Luiz Rodrigues; Talamini, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. 2. 16. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 794.

[4]                     Liebman, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. Buzaid, Alfredo. Benvindo, Aires (trad. por). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 6.

[5]                     Moreira, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista de Processo, Op. cit., p.16-17.

[6]                     Ibidem, p. 11.

[7]                     Silva, Ovídio Araújo Baptista da. Eficácias da sentença e coisa julgada. In: Sentença e coisa julgada, Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 105.

[8]                     Talamini, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 38.

[9]                     Ibidem, p. 40-41.

[10]                   Idem.

[11]                   A guinada teórica foi comemorada por alguns doutrinadores, mas também foi objeto de críticas por outros. Para Antônio do Passo Cabral, “a substituição do termo “eficácia” por “autoridade”, embora seja a positivação da tese mais popular na tradição brasileira, parece-nos uma definição equivocada no direito contemporâneo (…). Como já tivemos a oportunidade de sustentar, dizer que a coisa julgada não é um efeito da sentença não implica que a coisa julgada não possa ser efeito de mais nada no ordenamento.” (Cabral, Antônio do Passo. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. Alvim, Teresa Arruda (coord. por). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1281).

[12]                   Dellore, Luiz. Conceito e limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. Processo em jornadas. Lucon, Paulo Henrique dos Santos. (coord. por). Salvador: Editora Juspodivm, p. 668-681, p. 671.